sexta-feira, 22 de agosto de 2014

MAMUTES ANDRÓGINOS

Mamutes andróginos e puritanos,
compadecidos de tal dor humana e desgastante,
pude ver ao meu par um ser mutante
que naufragou na graça, eternamente.

Cadência de cores, um prisma alucinado
caindo ao chão. Pórtico da casa. Telhado.
E não era mais meu este desejo vil
subindo ao céu estrelado, azul, anil.

Cintilam as estrelas, portas abertas
dando ao vão da escada um tanto incerta,
mas meditando vou ao teu encontro agudo
beijando as mãos molhadas, um livro aberto.

Contigo: as mãos molhadas, um livro aberto;
anunciando a minha chegada, (eu descoberto),
vai gritando, o porta-voz, mamute andrógino
compadecido de tal dor humana, porém sereno.

Sabe-se lá o que da vida posso ter contigo:
lar, morada camarada, cães ladrando;
nas sextas-feiras: sair e beber com os amigos,
nos sábados e domingos: casa e filhos.

Porém, amor, teremos casa? Amigos?
Filhos nós teríamos? Depois, na noite,
beijarmo-nos eternamente. Amor, indago:
se poderíamos fazê-los até a meia-noite?

Mas na casa, a cama é quente, seda viva
são os lençóis. Caberá no quarto o meu roupeiro?
A sapateira? Terá a casa um cômodo estreito
para meus papéis avulsos e a escrivaninha?

Amor, a vida passa. Cai a noite em meu mundinho.
Vai-se de mim a brasa do dia; entra caladinho
o meu desejo de te ver, além-vida, na labuta
de nunca te deixar. Amar-te: aqui essa é a luta.

(22/08/2014 – Ijuí)

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

MINH’ALMA

Minh’alma tem voz,
ela canta com doçura; vocifera a agonia,
e, pela última vez, cantará aos céus o seu lamento —

porém, não é do meu sumo a tua aflição,
nem do meu pranto a tua fina canção.

Cantai. Oh! cantai, meu denso peito receoso,

minha pura voz, constante e bela:
com mais afã e menos glória;
serenidade da alma em meio ao oceano
de vozes e gritos do poente ao nascente.

Minh’alma grita o pranto

de não ser, então, mortal.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

REMANSO

Fazia-se algo intacto
o meu poema estagnado... (Duas palavras).

Se da alma brotasse a alva flor da paz,
e o meu cubículo se enchesse de luz serena

minha dádiva da vida seria apenas
a bela aurora, o clarear do dia.

Mas era meu aquele broto de viva flor
flutuando na imensidão retida de um poema bucólico?

Pude ver que não era mais meu,
e sim do Mundo,

com esta malfadada forma lírica de vida:
amanhecer e não reter a luz;

nadar às letras e nunca mais...
Faço desse poema o Nunca Mais

para decantar o outro lado
e descobrir, no vazio do entremeio,

a face incolor daquele Outro
que navega no líquido da aridez deste espaço sem matéria

em que meu corpo estará inerte,
sem fadiga alguma, perante o Rei dos poemas mortos.

Sobressaindo-me em duas palavras...

(04/08/2014 – Ijuí)